A Urgência da Teologia Negra e James Cone
CULTURA
A Teologia Negra (Black Theology), que surge dos movimentos “Black Power” e dos Direitos Civis, não tem a mesma origem da teologia negra africana. Ela é a teologia dos negros que viveram ou vivem em condição de segregação e em situações de marginalização numa sociedade supremacista branca.
[Por Jackson Augusto] publicado na Novos Diálogos
A Teologia Negra (Black Theology), que surge dos movimentos “Black Power” e dos Direitos Civis, não tem a mesma origem da teologia negra africana. Ela é a teologia dos negros que viveram ou vivem em condição de segregação e em situações de marginalização numa sociedade supremacista branca. É uma realidade da cultura negra e das igrejas negras nos Estados Unidos, com uma extensão no Caribe, no Brasil e na África do Sul. A Teologia Negra está, portanto, conectada com a desumanidade do racismo. É uma teologia que surge da luta negra antirracista, que partem das igrejas e dos movimentos.
A Teologia Negra é uma teologia ocidental, porém ela é mais um movimento a partir da comunidade negra do que simplesmente uma construção epistemológica. Ela surge com James Cone, um teólogo metodista, conhecido como “pai da Teologia Negra”. James Cone, quando questionado sobre o porquê da Teologia Negra ser ainda importante atualmente, responde: “A Teologia Negra é importante porque é uma teologia de um povo muito importante, é a voz que emerge de uma comunidade que tem sido silenciada ao longo da história. Então a Teologia Negra, assim como ela surgiu em 1969, das experiências e lutas do povo negro, pelos direitos civis e pelo movimento “Black Power”, hoje ela ainda está falando por meio das lutas do povo negro.” (1)
A Teologia Negra, segundo James Cone, significa esse grito do povo negro em direção à justiça e libertação. O teólogo fala que o Deus da Bíblia é o Deus dos oprimidos. Ele assume que os oprimidos dessa terra é o povo negro. Se tem alguém que se identifica com a morte de Cristo, esse alguém é o povo negro. Jesus morreu da pior forma que o Estado poderia assassinar alguém, e todos os dias corpos negros são selecionados para morrer da pior forma que o Estado pode assassinar alguém, passando por julgamentos injustos e legitimação dos poderes públicos e religiosos. Então, segundo a Teologia Negra, se Cristo tivesse nascido no Brasil na época colonial, provavelmente não teria morrido em uma cruz, mas sim em um tronco. Se Cristo vivesse em 2020 no Rio de Janeiro, ele morreria na ponta de um fuzil do BOPE, com direito a comemoração do governador e tudo.
A cristologia assumida pela Teologia Negra é o enegrecimento do Cristo, não só pelo viés histórico, mas também pela opressão sofrida pelo povo negro. Cristo não é negro pela pura rebeldia ou por uma questão político-partidária, mas porque morreu como um jovem negro morreria hoje no Brasil e no ocidente do mundo. A negritude de Cristo está em todos os detalhes de sua caminhada: ele assume a opressão e grita a libertação através da missão por justiça e afronta o Estado que o assassinou.
Martin Luther King, Jr. é o exemplo máximo de uma Teologia Negra prática, não sistematizada ou enclausurada. Enquanto James Cone escrevia e sistematizava a Teologia Negra, Martin Luther King, Jr. encarnou o que James Cone escreveu e desenvolveu. A importância dos dois, atuando na mesma época, traz para a comunidade negra um exemplo de encarnação da luta antirracista através do Espírito de justiça de Deus, mas também uma construção epistemológica que vai inspirar e empoderar gerações.
A Teologia Negra acredita no tensionamento das instituições que não querem enfrentar o problema racial, e acredita que o confronto pode gerar justiça racial. Martin Luther King, Jr. chega a afirmar: “A ação direta não violenta busca criar uma crise e fomentar tal tensão para que uma comunidade que se recusa a negociar constantemente seja forçada a enfrentar o problema”. O levante contra esse centro epistemológico, institucional e do saber é um dos principais desafios da Teologia Negra. A principal função da Teologia Negra está na vocação profética de seu nascimento, não amenizando as questões que construíram os saberes teológicos.
A Teologia Negra não banaliza o significado do perdão; não toma para si uma visão moralista diante de um dos valores mais subversivos e poderosos da fé cristã, que é o perdão. James Cone afirma o seguinte:
“A cruz também pode resgatar linchadores brancos e seus descendentes, mas não sem custo profundo, não sem a revelação da ira e a justiça de Deus, que executa o julgamento divino, com a demanda para o arrependimento e reparação, como pressuposto da divina misericórdia e perdão. A maioria dos brancos quer misericórdia e perdão, mas não justiça e reparação, pois eles querem a reconciliação sem a libertação, a ressurreição sem a cruz”.
Portanto, o autor assume um compromisso inegociável, afirmando que o perdão, a misericórdia, a ressureição e a reconciliação só são de fato alcançadas com justiça, a reparação, a libertação e a crucificação. A Teologia Negra entende a radicalidade da missão e do ministério da reconciliação no processo de encarnação do seguidor de Jesus na luta antirracista. Na perspectiva de Cone sobre o cristianismo libertador, que nada tem a ver com a religião branca supremacista, ele afirma o seguinte:
“A questão é clara: o racismo é a negação absoluta da encarnação, e, portanto, do cristianismo. Portanto, as igrejas de denominação branca não são mais cristãs. São expressão da vontade de tolerar e perpetuar esse estado de coisas. A antiga distinção filosófica entre qualidades primárias e secundárias de um objeto fornece uma analogia a esse propósito. De fato, apenas as qualidades primárias constituem a essência das coisas. Falando da igreja, a comunhão e o serviço são qualidades primárias, sem as quais a ‘igreja’ não é igreja. Ainda podemos dizer que uma comunidade é cristã se é racista de cima a baixo? A minha tese é de que o racismo implica ausência de comunhão e de serviço, e estas são qualidades primárias, ‘notas’ indispensáveis da igreja. Ser racista significa se colocar fora da definição da igreja.”
Para Cone, só é possível ser igreja a partir da prática da justiça social, a Teologia Negra só é possível a partir da lógica comunitária de um povo que foi excluído da mesa dos santos. Portanto, praticar a comunhão para o povo negro é subverter o lugar que fomos colocados, do não humano, onde não poderíamos falar sobre Deus e partilhar o pão com os irmãos. A religião negra é uma alternativa revolucionária, escancara as portas do evangelho, emancipa pessoas e traz transformações sociais. Por isso, a experiência da Teologia Negra é limitada e tem a ver com a história de um povo, afirmando que nenhuma produção teológica pode universalizar a experiência com Cristo. Jesus era de Nazaré, um Judeu que nasceu na região da Palestina, e sua experiência não foi universal. Assim, o contexto sempre vai importar. Como James Cone afirma, a Teologia Negra é baseada nas Escrituras e na experiência dos negros, e essas duas coisas têm a ver com a vida, a encarnação e a ressureição de Jesus.
Por fim, concluo com essa citação de James Cone:
“Eu queria dizer: Não! O Evangelho cristão não é a religião do homem branco. É uma religião de libertação, uma religião que diz que Deus criou todas as pessoas para serem livres. Mas percebi que, para os negros serem livres, eles devem primeiro amar sua negritude”.
É isso. A Teologia Negra é um levante contra o deus branco e opressor, que matou Cristo e continua a matar todos os que são considerados menores nessa sociedade.
* Jackson Augusto é um dos articuladores do Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, fez o curso de fé e política na Escola Martin Luther king Jr, é ativista da teologia negra no Brasil e faz parte do Colegiado Nacional do Miqueias Brasil.
Notas
(1) Entrevista de James Cone a Ronilso Pacheco, em abril de 2017: http://novosdialogos.com/videos/ronilso-pacheco-entrevista-james-cone/
Fontes
CONE, James. The Cross and the Lynching Tree. Maryknoll: Orbis Books, 2011.
CONE, James. O Deus dos oprimidos. Trad. Josué Xavier. São Paulo: Paulinas, 1985.
CARSON, Clayborne (Org.). A autobiografia de Martin Luther King. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579392-james-cone-1939-2018-in-memoriam